quinta-feira, 23 de abril de 2009

Goiano e Dona Maria, no povoado de Azuis, Tocantins. Foto: Lucas Kiler

É no boteco do casal que aprendemos um pouco mais da filosofia do Cerrado: “É pra tirá o ardume de pimenta que nóis toma a pinga! E pra tirá o ardume da pinga, é que nóis comi a pimenta!”
Bruna

Tudo azul....

Rio Azuis, TO. Foto Camila Pierobon

Inexplicável. Esta é a palavra. Nem transparente, clarinha, nem “azul meeeeeeesmo”, nem nada. Só Inexplicável pode descrever a água que vimos no rio Azuis, do Povoado de Azuis, Tocantins. Considerado o menor rio do mundo, com 147 metros de extensão, a coloração da água nos permite ver, ao fundo, cada pedrinha formando um colorido tapete-mosaico, sob a água de cor essa, inexplicável.
Depois de um banho que pode ser considerado algo como uma “acquacromoterapia”, fomos procurar um lugar para comer e passar a noite. Foi então que, pra nossa sorte, acabamos conhecendo o boteco do casal Goiano e Dona Maria.
Bem recebidos é pouco pra definir o que vem acontecendo em nosso caminhar por estas terras tão pouco visitadas. A gentileza e a simpatia do casal nos deixa sem palavras para descrever a “gostosura” que foi passar a noite em prosa e saborear a galinha caipira com pirão que Dona Maria fez na hora, acrescida da pimenta “machucada” (moída) no mesmo dia. Pra acompanhar, uma cachacinha feita ali pertinho, no Engenho do casal e que Goiano, com orgulho, afirma ser feita com o melhor tipo de cana que esse país possui.
O tal do pirão de galinha, foi a primeira vez que experimentei.



Bruna:- Pirão de Galinha???? Pra mim pirão era de peixe...
Piau:- Pirão de caiçara é de peixe, pirão de caipira é de galinha, uai!


Dá-lhe sabedoria do interior!
Bruna Muriel

Breve relato sobre a noção de propriedade privada entre os Kalunga

Camila, Fausto e Bruna, observando o imenso volume dágua de uma das quedas da Cachoeira do Macaquinho. Foto: Álvaro Galvani

A comunidade Kalunga é uma comunidade quilombola que vive na região da Chapada dos Veadeiros, a cerca de 300 anos. Resistentes á escravidão, que deles retirou a terra, a língua, a liberdade, os negros fugiram do trabalho forçado no processo de exploração do ouro goiano, formando o quilombo que hoje abriga cerca de 4.500 pessoas entre os municípios de Cavalcante, Teresina de Goiás e Monte Alegre.
O povo Kalunga já faz parte do cotidiano dos moradores da Vila de São Jorge, sempre por ali em busca de um trabalho, de uma prosa e de um “mé” – como era de se esperar, dado o alto índice de inserção do álcool entre os povos tradicionais do país.
Entre este povo, a noção de propriedade privada é quase inexistente. Se alguém se torna “cumpadi” ou “cumadi”, o limite entre o que é “meu” e o “seu” é rompido e prevalece a noção de propriedade coletiva.

Na "Cavaleiro" (como é chamada a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, onde fazíamos a nossa comida) sempre aparecia um dos Kalunga, “cumpadi” de Juliano (coordenador do lugar) e figura certa nas prosas do pedaço.
Dia desses voltávamos da absolutamente maravilhosa Cachoeira do Macaquinho eu, Lucas, Camila e nossos novos amigos Itamaratenhos* Álvaro e Tomás. (*Do verbo Itamaratar: atividade laboral relacionada ao Instituto Rio Branco e/ou ao Itamaraty).
Definitivamente muuuuuito famintos, esperávamos que nosso chef mineiro Piau tivesse feito aquela abóbora com galinha que havia sido comprada pouco antes. Encontramos Piau fazendo uma siesta no alojamento:

- Piau, diz que você fez comida e que ta lá quentinha esperando a gente, diz??
-É, ué... fazê eu fiz...
-Fez galinhada???? Fez galinhada????????????
- Hum...Na verdade a comida hoje vai ser meio vegetariana...tem arroz , feijão e abóbora...
- Ué, e a galinha que você comprou?
-Pois é...Kalunga levô...

Confesso que ficamos meio muchinhos... Não que a gente nao goste de comida vegetariana. Gostamos, além do que a abóbora estava linda, devia ter dado um creme delicioso... mas aquele franguinho...Acontece que nossos mantimentos estavam na Cavaleiro, e o Kalunga, sempre que passava por ali, levava alguma coisa.
Fomos pra Cavaleiro e, como era de se esperar, o arroz tava soltinho, o feijão fresquinho e a abóbora de salivar...Mas não conseguíamos parar de pensar no bom que estaria a coxinha daquele frango....
Eis que chega Kalunga, com sua fala etílicamente enrrolada:

-UHÁ! ** Cadê o Juliano??? Cêis viram o Juliano?? Vim chamá ele pra nóis cumê um franguin cum jiló que eu fiz lá em casa..tá di bao...Uhá!

Olhávamos Kalunga, olhávamos a abóbora, Kalunga, a abóbora...

(** Palavra Kalunga que significa algo entre um “Oi” e um “Uai”, e serve tanto como cumprimento quanto como exclamação. Falada, se transforma em um ruído bastante peculiar que somente Lucas e Camila conseguem imitar).

Bruna

Piau, em frente a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge. Foto: Bruna



Entrevista com Juliano, coordenador da Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge e da ASJOR - Associação de moradores de São Jorge.

Lucas, Piau e Camila, durante entrevista com Juliano. Foto: Bruna

Durante o período em que permanecemos na Chapada dos Veadeiros, ficamos hospedados numa casa alugada pela ASJOR (Associação de Moradores da Vila de São Jorge), em frente á Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, lugar da cozinha e da prosa diária. O alojamento foi gentilmente cedido pela Associação, através do contato com o coordenador de ambos os lugares, Juliano George Basso, também entrevistado por Piau, já que é através da Associação e da Casa de Cultura que programas e projetos culturais como o “Turma que Faz”, coordenado por Dorothy Marques, são desenvolvidos no distrito.
Juliano chegou em São Jorge assim como tantos outros visitantes: em busca do “turismo místico” da região (grande concentradora de hippies, ex hippies, artistas, ufólogos...). Aluno de filosofia, filho de uma família tradicional sulista, criadora de gado, decide, junto a três amigos, deixar de ser visitante esporádico para tornar-se morador da vila. Fundam, com verba privada, a Casa de Cultura Cavaleiro de Jorge, tendo como objetivo – em suas palavras - “agregar movimentos culturais modernos, urbanos, com manifestações tradicionais da região”.
Mais tarde a Casa de Cultura se associa á ASJOR, fortalecendo o objetivo dos amigos de transformar São Jorge em pólo cultural do Cerrado.Podemos considerar que surpreendentemente uma boa parte dos objetivos de Juliano foram cumpridos. É na Vila de São Jorge, através dos recursos públicos captados pela ASJOR, que hoje acontece o já importante Encontro de Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros, que reúne, anualmente, grupos e mestres de cultura tradicional de todas as regiões do país, que aproveitam o encontro para mostrar sua arte, trocar idéias e experiências e encantar um público que, em sua última versão, esperava reunir cerca de 5.000 pessoas.

Site do Encontro: http://www.encontrodeculturas.com.br/
Bruna

A Didática de Doroty

Meninos do "Turma que faz", com Doroty e Décio Marques. Foto: Bruna

Também são curiosos os métodos didáticos pouco ortodoxos da educadora. Em seu projeto “Turma que faz”, a criançada aprende música, dança, pintura...Diz que em uma das aulas de percussão que Dorothy ministrava, um menino arretado não parava de batucar errado. Doroty:
- Menino, toca isso certo, menino!”.
E menino toca errado.
- MENINO, já falei que é pra você tocá isso certo!
E menino continuava tocando errado...
- MENINO, SE TOCÁ ERRADO DE NOVO TE METO UM BEIJO NA BOCA PRA VOCÊ APRENDÊ! E DE LÍNGUA!!!!!!!
E menino, bobo que era, desafiou “a véia”. Doroty foi pra cima dele. Menino saiu correndo. Ela passou-lhe uma rasteira e záz!: meteu a línguona na boca de menino. Mas meteu mesmo, até menino vomitar. Diz que depois disso, nunca mais menino nenhum do grupo ousou desafiar a professora. Inclusive, atualmente estão se preparando pra participar da gravação de um CD patrocinado pela Petrobrás.Tão bom que ficaram!

Bruna

Mais Doroty

Foto: Bruna
Além de cantora, compositora, multinstrumentista e educadora, Doroty é também uma grande contadora de causos. Sentar ao seu lado, informalmente, significa uma viagem por entre história de caipiras, Kalunga ou famosos, todos eles – sem distinção – caindo no humor ácido desta professora mambembe.
Em uma de suas histórias, muito ilustradora de como as atividades cotidianas do interior assumem outras características além da função em si, Doroty nos contou uma história que era mais ou menos assim: quando morava numa cidadezinha lá no interiorzão do Mato Grosso, todas as mulheres, inclusive as pertencentes ao “alto escalão” da cidade, lavavam suas roupas no rio.Todos os dias, lá ia a mulherada com as trouchas de roupa na cabeça... Cansada de lavar e torcer, a secretária de cultura da cidade comprou uma máquina de lavar. Durante certo tempo ela abandonou o cotidiano do rio e aproveitou a praticidade do novo brinquedo.
Pouco tempo depois, Dorothy vê, entre tantas outras mulheres, novamente a secretária rumando ao rio com sua trouchinha de roupa a tiracolo. Perguntou:
-Ô mulher, porque você não usa a máquina novinha que comprou? Quebrô, é?
A secretária responde:
- Ah, Doroty...pro inferno aquela máquina... Num cunversa com a gente, num fofoca, num sei mais da vida do povo, tá loco! Como é que eu vô podê faze meu trabaio assim??? Eu não, to vortando é pro rio memo...”
Bruna Muriel

quarta-feira, 22 de abril de 2009

ADEUS A FIORELA



Fiorela, tamo com saudade!!!!!!
beijos do norte.

quinta-feira, 9 de abril de 2009

um pouco de Doroty








Desde o primeiro dia que cheguei na Chapada dos Veadeiros sinto vontade de escrever sobre ela. Iniciei varios textos mas todos pararam no lixo. A minha ideia era falar um pouco sobre essa mulher grandiosa, mas a força que ela traz consigo impediam qualquer reducionismo que minhas palavras certamente fariam. Gostaria eu de ser por um momento uma escritora para que talvez eu conseguisse traduzir com palavras o que essa mulher é e representa, mas essa característica me passa longe, e meus dizeres sempre expressarão menos. Não é exagero, só existe uma maneira de entender: conhecendo-a. O que vem abaixo são só algumas palavras bem aquém do que de fato eu gostaria.

Doroty Marques, descendente dos guaranis, “véia braba”, provocadora, ética, questionadora.

Com os longos cabelos brancos esvoacantes, passa todas as manhas pelas ruas de São Jorge com sua viola. Unhas compridas, voz rouca e grave, 63 anos, ariana.

Prêmio na UNESCO, prêmio Sharp, trabalho com crianças, arte, natureza e educação. CDs impecáveis: “Monjolear”, “Cantos da Mata Atlântica”, e outras obras gravadas com aqueles que fizeram parte de seu projeto, o “Turma que Faz”, que há anos corre cidades do país. Ensaia com mais de 70 criancas o próximo álbum que sera gravado em maio, aqui, na Chapada dos Veadeiros, em meio às cachoeiras, plantas e animais. Sim, ela vai montar um estúdio a céu aberto dentro do Parque Nacional.

“Véia da Lua”, levou 200 crianças, 100 da rua e 100 da favela, para morar com ela na Serra da Mantiqueira. Invadiu um banco, “com mais de 2 mil neguinho tocando tamor, porque eu invado é com arte, não com violência”, e fundou um centro de cultura numa cidade do interior do Mato-Grosso. Levou seu projeto pro Acre e precisou sair da terra de Xico Mendes pois fora ameaçada pelos mesmos que o assassinaram.

Fugir era rotina, desde pequena não parava mais de 3 meses em uma cidade, pai índio, curandeiro num período em que remédio de ervas era proibido e que teve ate a SIA em seu pé quando vendeu propositalmente a fórmula errada de um remédio para um banco em MG. Nessa fuga Doroty precisou atravessar a nado com o pai, a mãe e os dois irmãos menores o rio que divide o Brasil do Uruguai. Foi perseguida na década de 70 por enfrentar a ordem imposta pela ditadura. Lancou seu primeiro CD, o Semente, que questionava esse período político. Hoje não canta mais, o cigarro em excesso afetou as cordas de sua garganta.

Sua idéia é simples: ser como um beija-flor, que viaja rápido e é tão pequeno que o gavião não desperdiça seu mergulho, porque se ele sentir vontade e mergulhar o vôo sera certeiro.

Ter passado esses dias próxima a essa mulher foi um presente. Doroty Marques é forte, ética, coerente, guerreira, corajosa, características adormecidas na grande maioria das pessoas. Sao 63 anos vividos com muita intensidade, suas histórias sao incríveis e essas são as melhores horas em São Jorge.

Claro que também tem as cachoeiras!


por: Camila Pierobon

quinta-feira, 2 de abril de 2009